Manuel de Barros (1916/2014)

Autorretrato falado

Venho de um Cuiabá garimpo
e de ruelas entortadas.
Meu pai teve uma venda de
bananas no Beco da Marinha,
onde nasci.

Me criei no pantanal de Corumbá,
entre bichos do chão, pessoas
humildes, aves, árvores e rios.

Aprecio viver em lugares
decadentes por gosto de estar
entre pedras e lagartos.

Fazer o desprezível ser prezado
é a coisa que me apraz.

Publiquei 10 livros de poesia; ao
publicá-los, me sinto como que
desonrado e fujo para o Pantanal,
onde sou abençoado a garças.

Me procurei a vida inteira e não
me achei - pelo que fui salvo.

Descobri que todos os caminhos
levam à ignorância.

Não fui para a sarjeta porque
herdei uma fazenda de gado.

Os bois me recria.
Agora sou tão ocaso!

Estou na categoria de sofrer moral,
porque só faço coisas inúteis.

No meu morrer tem uma dor de árvore. 

Morreu aos 97 anos, em 13/11/2014.
Nasceu em Cuiabá, Mato Grosso, em 19/12/1916.
Tinha o apelido familiar de "Neguinho". 
Morou em Corumbá, quando menino, até os 8 anos, e depois foi estudar em Campo Grande.
Já rapaz, Rio de Janeiro, onde se formou em direito, 1941.
Filiou-se, aos 18 anos, à Juventude Comunista, fascinado por Karl Marx, época da 2ª guerra mundial, o movimento era fervilhante no mundo todo.
Desencantou-se com o comunismo, ainda no RJ, quando ouviu um discurso de Luiz Carlos Prestes, que estivera preso por 10 anos, por ser comunista. Sua mulher, Olga Benário, foi extraditada para a Alemanha, onde morreu torturada. E Prestes fazia o discurso com elogios a Getúlio Vargas. O mesmo Getúlio que o mantivera preso e o mesmo que mandara sua mulher para a morte.
"Sai andando sem rumo, desconsolado, e resolvi deixar o Rio", contou ele. 
Aos 21 anos publica seu primeiro livro, o ano era 1937.
Rodou pela Bolívia, Peru, Nova Iorque e em 1960 se estabeleceu em Campo Grande, herdeiro de uma fazenda de gado.
Só nos anos 80 foi reconhecido nacionalmente.
Daí até sua morte, foram vários prêmios e alguns documentários sobre sua vida.Tem livros traduzidos para o francês e o espanhol.
"Não uso computador para escrever. Sou metido. Sempre acho que na ponta de meu lápis tem um nascimento."
(Informações retiradas do texto de Carlos Herculano Lopes, do jornal O Estado de Minas, em 14/11/14)

Custei a redescobrir Manoel de Barros, depois de conhecê-lo na escola. Acho que ele tem uma pureza ímpar no que escreve. Muita lucidez e sabedoria, mesmo no que escreveu quando bem jovem.

O menino que carregava água na peneira
Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.
Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!




8 comentários:

Maria Glória disse...

Eu gostei e parei aqui: "Descobri que todos os caminhos levam à ignorância."
Beijo Lucinha!

Toninho disse...

Muito lindo o poetizar diferente do Manuel.
Tenho um livro Obras completas dele.
Bela homenagem.
Carinhoso abraço Lucia.
Bju e bom fim de semana amiga.

Beatriz disse...

Adoro as palavras dançando nas mãos de Manoel de Barros....Ele soube como ninguém contar em poesia as belezas do pantanal matogrossense!

Beijinhos Lúcia e um bom fim de semana!

<°))))< Bia

Luma Rosa disse...

Oi, Lúcia!
Para entender a poesia de Manoel de Barros, não precisa ser poeta, basta ser pessoa simples e entender que as histórias são tão verdadeiras que parecem inventadas.
:)
Beijus,

chica disse...

Oi,Lucia! Gosto muito dele e saboreio calmamente suas poesias! Lindo post! Obrigadão pelo carinho por lá! Foi um dia tri cheio de emoções e muito bom! Valeu! bjs, tudo de bom,chica

Cristina Pavani disse...

E que bom sempre haver por aí quem carregue água na peneira por nós!
Até podemos ver cada pingo d'água fugindo assim da peneira, e se atolando todo na terra fofa e vermelha - esse é Manoel!

Bjs, Lucinha - bela homenagem

Heloísa Sérvulo da Cunha disse...

Simplicidade encantadora.
Gostei da lembrança.
Beijo.

MARILENE disse...

Gosto de ler o que é claro e simples, o que mostra sentimento diante da vida. Você fez uma linda postagem, homenagem merecida ao escritor. Bjs.